“Moda para mim é sobrevivência. Moda é vivência, alimento, arte, sentimento. Moda é Kiara”
Foto: Mariana Bruno
Antes que as passarelas da “Casa de Criadores” servissem de palco para Kiara, ela já desfilava em seu bairro, em São Bernardo do Campo. E assim como foi no maior evento de busca por novos estilistas no Brasil, ela também foi autora de cada peça que usava nas ruas perto de sua casa. Sua história no mundo da moda começou quando ainda era muito nova. “Eu gosto de dizer que aprendi a costurar antes de aprender a falar. É algo que eu amo fazer, que veio da alma, de dentro de mim”, revela com otimismo no começo da entrevista.
Sua influência para desenhar veio do pai, que sempre teve uma veia artística e, por mais que Kiara nunca o tenha conhecido, os desenhos serviam como uma forma de conexão entre eles. Já o seu dom para a costura partiu das diversas interações com as costureiras e donas de marcas de moda evangélica em sua rua, por onde Kiara passava diariamente. “Eu pedia retalhos para essas costureiras de bairro e elas davam sacos cheios. Eu ficava a tarde toda costurando”, comenta.
Esses mesmos retalhos serviram de base para a primeira coleção de roupas da estilista. Fonte de sua inspiração até hoje, as bonecas Monster High, personagens estilosas que são filhas de monstros clássicos do cinema ou da literatura, foram suas primeiras modelos e parte de seu chamado para a moda. Cada retalho novo representava uma peça diferente no guarda-roupa dessas personagens. Sem perceber, a estilista em ascensão moldava não apenas novas roupas para suas bonecas, mas um novo traço em sua personalidade.
Em seguida, revela que, aos 11 anos de idade, ficou encantada pelos glamurosos desfiles da Victoria’s Secrets e pela estética do mundo élfico. Assim, ela e todas as suas amigas de bairro decidiram fazer um desfile, no qual cada peça foi costurada à mão por Kiara. Ao som do ex-grupo feminino norte-americano Fifth Harmony e com a ajuda dos irmãos de suas vizinhas, ela e todas as suas colegas fizeram uma versão própria de um dos desfiles mais badalados do mundo dentro da garagem da Kiara. Aos risos, ela revela: “Foi um luxo. Eu nem tinha falado para a minha família que eu era Kiara ainda”.
Dessa forma, a moda ultrapassou o nível de “futura profissão” para uma forma de encontro consigo mesma. Como uma menina trans e de baixa renda, cada retalho, cada linha, cada agulha e cada máquina eram uma forma de criar uma identidade para si. Ao mesmo tempo que descobria sua inclinação para a carreira, também se descobria mulher. Assim, o mundo fashion foi conquistando Kiara. Primeiro com desenhos, posteriormente com as bonecas, para enfim produzir vestidos para si mesma.
Animada, conta da vez em que uma de suas vizinhas deixou que mostrasse seu talento em uma das máquinas. Sua empolgação foi tanta que ela simplesmente costurou a própria blusa junto. Porém, para a garota, não havia medo, apenas vontade em transmitir e produzir a própria criatividade. Além da clara empolgação.
Finalmente, aos 14 anos, sua madrinha percebeu sua inclinação para a carreira de estilista e comprou uma máquina de costura para ela, a qual Kiara batizou de “Polegarzinha”. Esse foi o início de uma grande amizade. A máquina representou uma das bases para sua criatividade e para as roupas de sua transição. Elas foram unidas por 3 anos, até que sua companheira infelizmente veio a falecer de tanto trabalhar. Desta forma, Kiara voltou às origens e a costura à mão retornou.
Foto: Mariana Bruno
Muitas roupas, remendos, personalizações e acessórios depois, Kiara aprendeu a parte técnica da produção e começou seu curso no Senai, para que finalmente pudesse atuar definitivamente no mercado. “Eu fui começar a estudar moda mesmo no ano passado, antes eu sempre fiz tudo sozinha. Fui estudar para ter a parte técnica, porque a minha relação com criar roupas sempre foi ver como ela era feita e replicar. E para mim isso é muito valioso”. Assim, aos 18 anos, entrou em seu primeiro emprego.
Ao entrar no assunto, Kiara comenta que esse episódio em sua vida poderia gerar um podcast e dá risada. Foi em uma alfaiataria italiana, localizada na região de Pinheiros, que Kiara morou por dois meses e meio. Junto com mais dois funcionários – que posteriormente fariam parte da família dela -, os três formavam uma equipe responsável por dar seguimento aos afazeres do ateliê. A contratante – que Kiara prefere não identificar – não queria ter gasto com a locomoção deles, então os convidou para viver em sua própria casa. O que começou como uma oportunidade dos sonhos para três moradores da periferia paulista, tornaram-se dias conturbados.
Ela conta que ficaram vislumbrados pela oportunidade e pela estrutura da casa, mas que não demorou muito para que as promessas começassem a se tornar ilusões, como, por exemplo, um possível desfile da coleção elaborada por eles na Dinamarca. Com o passar dos dias, as omissões da herdeira viraram mentiras, e seu comportamento turbulento era justificado pela quantidade de drogas e álcool consumidos diariamente. Desta forma, a jornada de trabalho de Kiara e de seus colegas tornou-se dupla.
“Por ela fingir que tinha autismo e pelos problemas que ela realmente tinha com álcool e drogas, acabava que a gente não dormia, porque ela queria que a gente ficasse dando atenção para ela. Ou seja, havia dias em que nós dormíamos umas 4 horas da manhã e tínhamos que acordar 9 horas para ficar trabalhando até às 22 horas”, revela com um misto de indignação e incredulidade.
Em um tom mais humorado, comenta que tudo isso é motivo de piada hoje em dia, mas que no momento era uma pressão psicológica pura, por não saberem o que poderia acontecer com eles. Com o decorrer dos dias e das noites mal dormidas, Kiara e os demais funcionários decidiram confrontar a empregada doméstica, que contou que a avó da herdeira mandava o pagamento deles todos os meses, mas a mulher pegava o salário para comprar drogas. A gota final aconteceu depois do Ano-Novo de 2024, quando a mulher decidiu acabar com a relação deles. No final, o máximo que Kiara recebeu nesses dois meses e meio de trabalho foram R$300.
Apesar do desfecho da história, Kiara diz que não se arrepende de ter aceitado o trabalho, pois foi ali que teve sua primeira experiência definitiva no mercado da moda e, acima de tudo, foi lá que conheceu o que hoje forma uma parte essencial da sua família.
Poucos meses depois, Kiara atravessava uma fábrica de estofados para o seu segundo emprego. Desta vez, ela entrou como costureira e aprendeu a como manusear tecidos grossos. Ainda que não oferecessem vale-transporte e vale-alimentação, além de não assinarem sua carteira de trabalho, a experiência na fábrica foi essencial para o seu currículo. Entretanto, dessa vez, foi a hora do preconceito interromper a trajetória da estudante. Depois de sofrer um ataque transfóbico de uma das costureiras, foi Kiara quem foi desligada da empresa. Um dia depois, entrava como ajudante em um ateliê de noivas. Apesar de gostar do emprego, acabou não permanecendo por conta do baixo salário.
“Quando se é artista, a gente acaba recebendo mais a vivência e a experiência. Claro que é triste quando chegamos em casa e não temos aquilo que queremos ter. Mas eu guardo muitas memórias boas dos lugares onde eu trabalhei, porque pelo menos estava trabalhando como a Kiara, coisa que a minha família não acreditava”, comenta.
Em toda a entrevista, apesar dos episódios que enfrentou, a estudante de moda sempre trazia um ar humorado e o motivo não é apenas seu amor pela moda e sua resiliência, mas as pessoas que a apoiaram nesse meio tempo. Enquanto vivia 1 ano em menos de 5 meses, Kiara contava com a ajuda de seus amigos para se comunicar com as pessoas e conseguir emprego, visto que não tinha um celular. E foi exatamente a amizade que fez com que, um mês depois, fosse uma das selecionadas do projeto “Crie Moda Autoral Trans-Forma”, realizado por uma parceria entre o Sebrae e a Casa de Criadores. Durante 5 dias, Kiara cortou, costurou, criou, modelou e conheceu um pouco do cenário que sonhava há anos. No evento, ela pôde apresentar peças autorais e desfilar com elas. “Imagina uma garota travesti, preta, pobre e que nunca tinha ido a um desfile chegar lá e ter acesso a tudo aquilo. Meus olhos brilharam. No último dia do evento, o André [André Hidalgo, Diretor Artístico da Casa de Criadores] disse que nós tínhamos feito um trabalho incrível e que nós seríamos a primeira turma a desfilar na Casa de Criadores. Foi lindo, até hoje eu não consegui chorar”, revela animada.
É comum associar a indústria da moda a um ambiente conturbado, sem trabalho em equipe. Mas o destino de Kiara não enfrentou isso, pois seus professores e colegas sempre apoiaram suas produções. Agradecendo ao universo, a estudante fala: “Acabou que o network virou um netfamily. Eu acho isso muito engraçado porque todo mundo que eu conheci, tirando essa mulher da alfaiataria, nenhuma dessas pessoas pisaram em mim, sempre foi uma rede de apoio”.
Atualmente, Kiara se sustenta produzindo suas roupas por meio do upcycling. Apesar disso, o dinheiro ainda não é suficiente para se manter e pagar seu curso.
Antes de desfilar em passarelas, ela andava pelas ruas com o propósito de gastar seus R$5 – que recebia de mesada – em retalhos e agulhas. Antes de usar sua capacidade criativa em eventos de moda, ela já utilizava para costurar à mão suas próprias peças. Antes de se debruçar sobre máquinas em seu curso de Estilismo no Senai, ela já implorava para as costureiras do seu bairro a deixarem mexer numa. Todos esses fatores formam a Kiara atual, uma menina de 19 anos que batalha para ganhar a vida por meio da sua arte.
“Eu faço isso desde que eu sou eu. Não tenho outra coisa para fazer, eu não sei fazer outra coisa, eu sei viver moda. Talvez eu não consiga viver da moda, mas eu vivo ela”, finaliza Kiara Valentine, com o mesmo otimismo com que começou a entrevista.
Foto: Mariana Bruno